Uma das memórias da minha infância eram as cuícas a apregoar
conquilhas elas ruas de VRSA a cinco tostões cada medida; era um tempo em que era
fácil para qualquer um apanhar conquilhas na praia, nessa época estes bivalves eram
tratados como de segunda, um pouco como os lingueirões ou mesmo as ostras, agora
coisa fina que nesse tempo eram conhecidas por cascabulho.
Era um tempo de miséria para os cuícos, de miséria e de
segregação por das elites locais que agora gostam muito de ir a Monte Gordo
oferecer minis e fazer promessas oportunistas a troco de votos. Muito boa gente
mudava de passeio para não se ter de cruzar com um cuíco ou por uma
conserveira, o cheiro a peixe de que eram acusados incomodavam muito as narinas
finas das nossas pessoas supostamente importantes.
Recordo-me de ouvir as sirenes das fábricas, cada uma
diferente da outra, para que as conserveiras soubessem se era a sua fábrica que
as chamava. Não existiam vínculos profissionais, direitos laborais não
existiam, o horário de trabalho era enquanto houvesse peixe e quando este
faltava ou se entrava na época do defeso não havia trabalho e muito menos
qualquer salário ou subsídio.
Vinham a pé desde Monte Gordo, passo apressado, com filhos
ao colo, respondendo à chamada da fábrica. Os filhos ficavam num canto, a
primeira fábrica que tinha um espaço a que com alguma boa vontade poderíamos
designar por infantário era a fábrica Parodi. Recordo-me que ficava ao fundo do
corredor em frente ao portão, que ao lado esquerdo tinha a residência e
escritório do patrão, Mário Angelo Parodi.
Os cuícos eram segregados, excluídos e vítimas de um racimo
que deixaria muitos euro-africanos com inveja. Certa vez tive uma discussão com
um português residente em Cabo Verde sobre racismo. Disse-lhe que até ao 25 de
Abril raramente vi um africano em VRSA, mas para saber o que era racismo a
sério bastava saber como eram tratados os cuícos do Sertão. Aliás, bastava
residir em Monte Gordo, para ser tratado como cuíco e os poucos estudantes da
escola secundária vindos de Monte Gordo eram assim tratados de forma
pejorativa.
Fui muita vezes ao mar com o Patilhas, cuíco da companha da
traineira Biscaia, homem de tez escura, com a pele curtida pelo sal e pela
brisa salgada, trabalhador e amigo como poucos, ainda hoje retenho a sua imagem
e recordo a sua boa disposição e estilo brincalhão.
Recordo das muitas cuícas que antes de irem para fábrica
passarem no mercado, pela pequena charcutaria da Vitoriana, onde comprava um
bocado de chouriço, de queixo ou de fiambre, para meterem no papo-seco que
comiam ao almoço ou ao lanche. A regra era recorrer ao fiado e a longa lista de
fiados foi rasgada quando a Vitoriana faleceu.
Com o 25 de Abril e graças a gente como o Graça, o António Zé e depois o Murta, Monte Gordo morreu, primeiro o projeto SAAL, depois a auto construção ou o apoio camarário à habitação mudou Monte Gordo, o Sertão desapareceu, os cuícos ia sendo tratados como gente, muito graças a uma geração de políticos de esquerda, em especial do PCP, num tempo em que ser comunista era mesmo ser comunista, não havia gente como o bandeado Babita que nem deve saber como traiu o seu partido em VRSA, porque ao bandear-se para tirar proveito da traição, traiu toda uma história de gente digna.
Ao contrário do desprezo que ainda hoje se sente nalgumas
personagens, que por sinal não valem um caracol, os cuícos merecem admiração, foi
gente que sofreu muito e que chegaram a ter de ir para outras paragens para
sobreviver nos tempos da fome, ficando com um nome grande na cultura
portuguesa, pela voz do Zeca Afonso numa das suas melhores canções “Os Índios
da Meia Praia”.
Apesar de toda a segregação que sofreram e de terem tido
como ponto de partida a pobreza absoluta a comunidades cuícas de Monte Gordo e
da Meia Praia sobreviveram e progrediram. Fizeram-no a pulso, quase sem apoios
de ninguém e só se começaram a lembrar deles quando em democracia passaram a ter
algo que interessava aos políticos locais, o voto.
Muito deles singraram à sua própria custa e hoje são
empresários bem-sucedidos, vão longe os tempos do analfabetismo e hoje há é
fácil encontrar cuícos nas universidades ou com cursos superiores, sem que
tenham precisado do apoio oportunista de alguns políticos locais que
desconhecem o que é ter escrúpulos.
Ainda assim falta reparar a forma como no passado foram
marginalizados e excluídos do desenvolvimento. Mas isso não é oferecer minis e
organizar sardinhadas com amigos arrebanhados para alguns políticos de caca se
exibirem como iguais entre os cuícos, quando não é isso que sentem ou defendem.
Ainda há cuícos pobre, mariscadores e pescadores sem apoios,
idosos a viver com rendimento mínimo e jovens sem grandes perspetivas a não ser
continuar na pesca ou trabalhar em profissões mais remunerados. São necessárias
políticas ativa, mas não caridade eleitoral, políticas socias, de habitação, de
formação profissional e apoios a iniciativas empresariais para reparar uma injustiça
a que foram sujeitos durante muitas décadas.
Os cuícos são gente demasiado digna para que precisem de almoços
eleitorais, de palmadinhas nas costas ou de políticos muito crentes que gostam
de se fazer ver nas procissões, com ar de carregarem os seus pesados pecados.
Devem ser tratados com dignidade porque têm o sentido da mesma como poucos e
merecem o respeito dos políticos, mesmo daqueles que se fazem de cuícos finos em
época de eleições.
Espero que depois de ler este post o de Araújo aprenda a
tratar os cuícos com respeito e dignidade, porque a forma como se comportou na
escola, referindo-se a uma cuíca de uma forma desrespeitosa, com palavras
carregadas por desprezo e segregação étnica só nos pode meter nojo e sentir
desprezo por alguém que só é alguma coisa numa vida graças ao concelho de Vila
Real de Santo António, onde os cuícos são um grupo que merece destaque e respeito
pelo que são, pela história que carregam e pela capacidade de manter as sua
tradições e coesão ao longo de tantas décadas de marginalização e segregação
social.
Às vezes chego a pensar que de Vila Real de Santo António
este autarca só conhece as alfarrobas do sogro.