QUANDO O NARCISISMO POLÍTICO NOS TORNA RIDÍCULOS



Ontem o nosso Araújo inaugurou um novo tipo de reunião de câmara ao nível nacional, abrindo a reunião declamando um poema, o “Cântico Negro” de José Régio. Mal lido, porque o nosso Araújo é mais dado às homilias do que à poesia, mas percebendo-se que queria fazer dele o poema de José Régio.

O Argumento era ser o dia da poesia. Com tantos dias comemorativos, parece que vamos ter muitos espetáculos imbecis e oportunistas.

Curiosamente, pela primeira vez a sala da reunião de CM estava cheia, estavam lá todas as chefias da CM, certamente “convocadas” para assistirem ao momento poético de um autarca que não tem limites para o seu narcisismo político e que se arrisca a ser o primeiro cliente da especialidade de psicologia para políticos.

Cada vez mais percebe-se que o coitado bateu violentamente com a cabeça numa parede na noite eleitoral mais difícil da sua vida. Até parece outro, já tira fotografias fazendo que está a trabalhar, depois de ler o LdF pagou o que devia aos funcionários em resultado das subidas de escalão e parece que de um dia para o outro e de forma apressada vai pagar o que se tem recusado a pagar aos funcionários da SGU.

Nada como uma banhada eleitoral para perceber que estava perdido, perdida a esperança de chegar ao governo resta-lhe transformar o que resta do mandato num comício permanente, lutando desesperadamente para não ter de regressar às aulas de espanhol, já que sem a cunha do Luís Gomes será impossível arranjar um tacho no IEFP.

Ou estamos muito enganados ou vamos dar muitas gargalhadas por conta deste presidente poeta.
Fica aqui o poema, para que todos vejam como o grande Araújo parece ver-se a si próprio:


“Cântico Negro”

“Vem por aqui”- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
—Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: “vem por aqui”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
a ir por aí…

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei para onde vou,
Não sei para onde vou
—Sei que não vou por aí!

José Régio